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Mostrando postagens de janeiro, 2017

Engano

Em nosso dia a dia, imaginamos conhecer muito bem as pessoas porque as confundimos com os papéis que elas representam - esposa, marido, feminista, amante, ateu, cristão, empresário, artista, etc. No fundo, porém, todos sabemos que ninguém é somente isso - não por muito tempo. Mas fazemos de conta que sim. Afinal, quem é capaz de descobrir quem são os outros de fato? Nem mesmo chegamos a nos decifrar completamente, tão indecisos que somos. O importante é não entrar em desespero - a ilusão é real; o engano, uma possibilidade somente.

A bronca do velho Buk contra a poesia

No dia 19 de maio de 1984, o poeta Charles Bukowski escreveu para William Packard, editor da New York Quarterly , uma carta* em que atacava com argumentos afiados a maior parte da poesia produzida no mundo até então. Sobraram poucas exceções. A bronca toda pode ser resumida em algumas poucas frases que copio abaixo. "A poesia [que me mostraram na escola] simplesmente não era legal, era uma coisa falsa, não importava." "Os poetas que eram enfiados nas nossas goelas eram imortais, mas não eram nem perigosos nem interessantes." "A poesia nunca teve muitos atrativos, e ainda não tem. Sim, sim, eu sei, houve Li Po e alguns dos primeiros poetas chineses que conseguiam compactar grande emoção e grande verdade em poucos versos simples." "Não acho que seja uma virtude especial o fato de um poema não poder ser entendido." "A poesia pode ser divertida, pode ser escrita com clareza espantosa, não entendo por que precisa ser de outro jei

Virtude

- Preciso ter ideias. - ... - Eu tou aqui com uma tela em branco e não sei o que vou pintar. - ... - Que merda de bloqueio criativo! - ... - ... - Vou te dar uma ideia. - Fale. - Não comece com uma tela em branco. Comece com um rascunho. - Sim, eu uso lápis antes. - ... - Já apaguei algumas coisas. - Então você tá indo bem. Continue apagando que daqui a pouco termina um novo desenho. - ... - ... - Não sei… Acho que o meu bloqueio é um modo de sentir ódio de uma certa pessoa sem demonstrar isso pra ela. - ... - Não é algo de que me orgulhe… - Relaxe. Pra o artista, o ódio pode ser um sentimento muito mais útil do que o orgulho.

O fundo falso da linguagem

Héber Sales Poesia é revelação - não de algo sobrenatural, nem de um fato real, mas de uma imagem mental ou de um sentido ignorado pela ideologia oficial e pelo senso comum, embora esteja previsto, dialogicamente, na língua. É um lampejo cuja "verdade" é reconhecida pelos falantes como descoberta, ou seja, algo que estava latente e já existia no inconsciente coletivo, e, de repente, foi resgatado e revelado à luz do dia por alguém que se esgueira pelas frinchas do fundo falso da linguagem, o poeta. Há poetas que fazem essas descobertas nas falas cotidianas, como se apenas riscassem uma paisagem manjada para que enxerguemos que ali não se vê uma realidade, mas uma tela, uma representação - que a transparência da linguagem é uma ilusão enfim. Eu penso, por exemplo, no Frank O'Hara, no Francisco Alvim, num certo Manuel Bandeira. E para falar dos mais novos, na Ana Martins Marques, na Alice Sant'Anna, no Fábio Weintraub. Fábio Weintraub ESTILO (de uma entrevist

Escrita criativa

Quando for escrever, resista à tentação de explicar tudo. Deixe espaço para as entrelinhas. É onde a sua imaginação pode colocar o que quiser. E a do leitor também. Todo mundo se diverte e fica satisfeito com a sua própria esperteza.

Quem anda distraído não sonha acordado

Héber Sales Muita gente diz: se você prestar atenção, vai perceber a realidade como ela é. Eu digo, porém, que se você de fato prestar atenção, primeiro, vai sonhar, e depois, se continuar atento, verá que a realidade e o sonho são feitos da mesma matéria. Os que viajam com pressa não sabem disso. Para eles, a distância entre dois pontos é calculada em km ou minutos, elementos que da realidade nada têm. Não têm, por exemplo, aquelas quatro montanhas e três vales que separam a tua casa da minha. Se eles prestassem um pouco mais de atenção, veriam que a estrada, como a cidade, também conta com os seus quarteirões: depois de passar por três cumes, você dobra o último deles e chega onde eu moro. Esse percurso pode ter os 23 km assinalados naquela placa oficial à beira do asfalto, ou pode ter muitos mais. Depende do estado de espírito de quem nele transita. A saudade, já descobrimos, costuma encompridar os caminhos. Também acontece de, por não desejarmos chegar logo, chegarmos mai

O escritor como um filho da puta

John Berger no The Guardian , em 12/12/2014 : "A linguagem é um corpo, uma criatura viva, cuja fisionomia é verbal e as entranhas, linguísticas [...].  Depois de escrever algumas poucas linhas, eu deixo as palavras escorregarem de volta para dentro da criatura. E ali, elas são imediatamente reconhecidas e saudadas por uma hóstia de outras palavras com quem elas têm uma afinidade semântica, ou uma relação de oposição, ou de metáfora ou de aliteração ou de ritmo. Eu ouço a sua confabulação. Em assembléia, elas estão debatendo o uso que eu fiz das palavras que escolhi. Elas estão questionando os papéis que lhes atribuí.  Então eu modifico as linhas, mudo uma palavra ou duas, e submeto-as novamente à criatura. Outra confabulação inicia-se. E a coisa segue assim até que se ouve um suave murmúrio de consentimento provisório. Então eu sigo para o próximo parágrafo.  Outra confabulação inicia-se...  As pessoas podem me chamar de escritor à vontade. Para mim mesmo, eu sou